Os três.

22:12

Tinham por hábito ver o telejornal sem som. Não eram as notícias reais que os levavam a ligar a televisão - a essas tinham acesso sempre que quisessem. Faziam-no para se sentirem livres, para se sentirem acompanhados na sua solidão. A cada reportagem diziam a primeira história que lhes vinha à cabeça. Caso fosse uma qualquer história  sobre obesidade, e as comuns imagens ventrais fossem exibidas, qualquer um dos três podia rapidamente dizer Estão a falar sobre os recentes casos de desaparecimento de pessoas., acredita-se que se trate de canibalismo! Ou se estivesse no ar uma peça meteorológica não tardava até que gritassem, quase em coro, INVASÃO ALIEN!

Como seria de esperar, ou não fosse o finito uma qualidade de tudo o que é, o ritual diário conheceu o seu fim. É célebre ainda hoje, entres eles, o momento em que se exibiam imagens de várias pessoas a encherem sacas de areia numa praia - a verdade por trás da reportagem encontrava-se numa tempestade tropical - e o silêncio prolongou-se por minutos intermináveis. Que de bizarro se pode dizer quando uma situação por si só faz já esse trabalho? O tempo passava como se soubesse que não voltaria para trás. O som de cada momento prolongou-se até que se sentisse na pele. O repórter acabou a sua peça, o pivot apareceu de repente e disse, directamente para a câmara, Adeus., desta vez não há amanhã. Os três, que por anos se riram de si próprios, desligaram a televisão, levantaram-se e seguiram cada um seu caminho. Nunca mais se viram. Estão agora irremediavelmente sozinhos com a sua solidão, apenas com todo o mundo por trás.

Pherreyra, o Segundo

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